O tempo em estado sólido: o que restou de 2023
Livros, filmes, séries e um punhado de memórias boas
Lembro de uma aula de escrita criativa em que o professor disse que a escrita era a arte de administrar três tempos no espaço das frases. Traçar correlações mais ou menos expressivas entre o tempo da escrita, o tempo da leitura e o tempo interno do próprio texto.
Li algo parecido num livro do Paul Veyne ou do Hayden White, não sei exatamente: num texto histórico, mil anos podem caber num parágrafo e um dia como o 8 de janeiro pode se alongar por centenas de páginas.
Em tons proustianos, se você capturasse toda a sua vida num rolo de filme, o filme teria o tempo exato da própria vida. Mas se tentássemos nos lembrar de um dia ao final de cada dia, levaríamos vários dias para anotar com precisão de detalhes todas as camadas de tempo que existem numa única hora. Num fragmento de memória. Numa foto antiga.
2023 foi o ano mais quente da história. E foi um ano muito importante pra mim. Pesadelo Tropical veio ao mundo. Conheci a Luana, amor da minha vida, no dia de São Jorge. E vi o Joca fazer dez anos se preparando para mudar para o Planalto Central, a mil quilômetros de distância.
O primeiro ano do Governo Lula também foi ano da chegada do meu sobrinho Matias, o bebê mais esperto do mudo, do anúncio do Caetano, que chega logo mais.
Passei dias muito felizes. Uns mais ou menos. E uns meio tensos. Sem apostar em nenhuma teleologia do progresso (vide Walter Benjamin), chego em 2024 mais tranquilo e em paz comigo mesmo do que em 2023.
Com mais projetos literários engatilhados, mais consciente do que desejo para minha vida e mais tranquilo do que não quero.
Livros
Obviamente, não consegui terminar todos os livros que desejava ler este ano, mas aos poucos vou retomando minha skin de leitor pré-pandêmico. Foram leituras muito marcantes. Ioga, do Emmanuel Carrère produziu um efeito tão impressionante que literalmente comecei a fazer ioga. Senti que finalmente poderia aprender a respirar. O díptico do Édouard Louis - Lutas e Metamorfoses de uma mulher e Quem matou meu pai - me tirou o fôlego e levou as lágrimas nos vagões de metrô. A água é uma máquina do tempo, da Aline Mota, As pequenas virtudes, da Natalia Ginzburg e Lila, do meu amigo Gael Rodrigues também foram livros que me acompanharam por esse ano.
Filmes e séries
O encerramento de Succession teria sido a coisa mais estrondosa que vi na televisão este ano, caso eu e a Luana não tivéssemos engatado intempestivamente The Leftovers. Ainda estou muito impactado com o episódio final. Talvez seja o melhor roteiro de final série já escrito. Tudo ao mesmo tempo encaixado e ao mesmo tempo apenas insinuando da maneira mais elegante possível. Gostei bastante de O Urso, embora os episódios sejam um tanto irregulares. Destaque especial para aquele em que Richie aprende a polir garfos: ninguém muda, mas estamos nos transformando o tempo todo.
E, claro, Cangaço Novo, que elevou a régua da qualidade técnica da produção brasileira a um nível jamais visto.
Poucos filmes me marcaram. Eu achei Oppenheimer bom e um tanto arrastado. Barbie é divertido, mas não tão divertido como The Flash, um surpreendente filme de boneco. TÁR (que só vi este ano) foi uma das coisas acima da média. Beau Tem Medo, um desconfortável pesadelo psicanalítico não muito amistoso, mas bem estranho no bom sentido do termo. Curtir também o experimento autoral de Retratos fantasmas.
O melhor filme de 2023 que passou pelas minhas retinas foi sem sombra de dúvidas Anatomia de uma queda. Fiquei dias pensando no que realmente havia acontecido. E ainda não sei.
Ainda quero ARREMATAR essa lista da Times, mas deixo aqui uma menção honrosa para Resistência, um ótimo exemplar cyberpunk com uma estética de encher os olhos para quem curte o gênero. A primeira coisa minimamente interessante depois de Blade Runner 2049.
Algo para ver lendo Terra arrasada, Jonathan Crary.
Um bom 2024 para todos nós. E obrigado por acompanhar este escriba.
Pesadelo tropical agora também está disponível em e-book.
Em breve, trago notícias do meu próximo livro, Tempo fantasma.
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Pós-escrito: gostei muito também dos curtas do Wes Anderson para os contos do Roald Dahl. E também de Saltburn: uma espécie de Parasita sem luta de classes e uma pitada de BDSM e energia de Succession com sotaque Harry Potter.
Segunda pessoa que vejo indicando Ioga do Carrère. Acho que é um sinal :) bom ano, Marcos!
Eu e The Leftovers separados por alguns parágrafos. Que venha um ano incrível para vc, meu amigo