Há uns cinco meses, eu estava na saída do mini Pão de Açúcar em frente à praça Carlos Gomes quando um cara de camisa laranja-escura ou talvez florida veio caminhando com um livro na mão. Era domingo. Luana e eu tínhamos ido almoçar num samba, não muito longe de casa. E depois saímos com o Amendoim para passear. Acontece todo tipo de coisa nessa praça. Campinas é uma cidade muito grande mas também é uma cidade muito pequena. Cheia de ruas vazias nas terças-feiras e faróis vermelhos facultativos sete dias por semana. Nesse dia, a praça Carlos Gomes era uma espécie de feira gastronômica com música no coreto e barracas com comida típica, hambúrguer, cerveja artesanal, esse tipo de coisa.
Customização dá mais controle ao leitor, permitindo que ele ajuste o que quer consumir.
O cara com o livro na mão parecia vir da praça, ou talvez viesse de outro lugar. Não consegui deduzir nada além disso. Eu o encarei e ele me encarou de volta. Esse intervalo durou o estranho tempo das coincidências. De longe, o livro pendurado com esforço na sua mão direita parecia uma caixa preta de sapato sem marca.
Amendoim é apaixonado por tudo. E naquele momento puxava e esticava a coleira aos pulos, a língua pra fora, ofegante, como se a vida toda fosse um estranho milagre ou grande saco de petiscos supersaturados.
Personalização usa inteligência artificial, algoritmos e aprendizado de máquina para prever e oferecer conteúdos que o usuário provavelmente deseja ler.
Dei duas voltas ao redor do braço. E o trouxe pra junto de mim.
“Livro promissor”, eu disse. O rapaz de camisa laranja talvez florida abriu um sorriso assustado mas sem muita hostilidade e depois um tanto amistoso mas também desconfiado: um leitor encontra outro, ao acaso. Sabem do que se trata. Está tudo bem, nada precisa ser dito. Afinal as palavras mais nos afastam do que aproximam. Naquilo que dizemos está o contrário do que queremos dizer. Os leitores são sempre culpados. Há muito trabalho a ser feito e nunca damos conta. Mas somos dois iniciados numa seita milenarista e sem qualquer influência concreta no mundo ou grandes apertos de mãos clandestinos. “Comecei agora”, ele respondeu num tom de desculpas por ainda não ter atravessado aquelas mais de 800 páginas, mesmo que estivesse adorando o livro. Há livros que são incríveis e terríveis, mas acabam traídos pelo trabalho urgente que deixa nossos chefes mais ricos e pelo vício em conteúdo que derrete nossos cérebros.
Uma oração absoluta é uma oração que possui sentido completo e não depende de nenhuma outra oração para ser compreendida. O sol brilha no céu. Isso é tudo?
“Você leu o outro livro dele?”, o leitor do minimercado me pegou desprevenido com essa. Não tinha lido ainda nem esse, abandonado na beira da cama junto com outros livros incríveis. Nada é completo. “Não conheço. É bom também?”, perguntei. “Maravilhoso!”, ele disse. Pegou um carrinho e desapareceu entre as prateleiras miúdas. Relaxei a guia e o Amendoim se sentou, quieto.
Retomei a leitura de Solenoide por esses dias, no pouquíssimo tempo que tem me sobrado entre apostilas de comunicação social, simulados de análise sintática, códigos de ética, legislação e etimologia das palavras. Calhamaços desta envergadura estão fora de moda, o que dá um charme ainda maior para a coisa toda. O tempo é o tecido fundamental da literatura. E essa experiência só se completa na leitura. Adoro formas breves, mas avançar por um monumento de palavras, uma depois da outra, cenas se acumulando, oferece um tipo de densidade a experiência que só o livro, essa forma arcaica, brutalista, fora de época, pode nos dar.
Nas redes, cada dia mais infestadas pelo discurso triunfalista de coachs, vencedores dos próprios umbigos (síndrome do subsíndico), jamais vamos ver derrotas de verdade, jamais vamos encontrar algo como Solenoide.
A beleza terrível dos fracassos vividos sem ironias tolas, a maluquice pueril e inescapável dentro de cada um de nós. E nada daquela pose espertinha. No fundo, é apenas um ato falho defensivo, resultado da falta de repertório estético e ético. São pessoas que acham que inventaram a roda apenas por não levarem nada a sério de forma bobinha, porque, no fim das contas, não têm absolutamente nada a dizer. Medo de falhar. Coitado.
Solenoide traz um humor desamparado.
Obras com mais de 400 páginas, disse uma reportagem da Folha de S. Paulo ano passado, foram de 47% a quase zero entre os best-sellers de ficção no Brasil de 2014 a 2023. É a década da ascensão do algoritmo, das telas, dos coachs fascistas e dos coachs religiosos dos grandes sábios terapeutas com pensatas de ejaculação precoce de 15 segundos e não por acaso da nova onda nazi-facista, defensores da própria família. Trevas.
A Literatura não tem obrigação nenhuma de melhorar o mundo. De corrigir nada. Nem a vida de ninguém. Existem muitas literaturas e para todos os gostos, tipos e jeitos. Ela tem efetivamente melhorado e pautado muito a vida de quem nunca pode falar e agora fala, seja por livros, redes, vídeos. De quem morre e morria e de alguma forma sobrevive. E conta o que viveu. E também melhora, demais e muito, a miudeza do dia de quem gosta de ler. Então a gente sorri em silêncio e desarmado quando encontra um outro leitor de calhamaços - esse culto secreto, quase criminoso, clandestino de tão inútil, cada vez mais raro - na porta do minimercado.
São 12 segundos. Três ou quatro frases. Muito melhor que muito evento literário.
Estou na empreitada de Solenoide por aqui. Fascinada, mas lenta.
“ As ruas encantam a vida na miudeza que ninguém suspeita.”
Luiz Antonio Simas