Playlist para escrever como Wittgenstein ameaçando Popper com uma haste de ferro no Círculo de Viena
É provável que a minha memória esteja me traindo nos detalhes, mas os detalhes falsos também são importantes. Medo e desejo são duas faces da mesma moeda.
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Retomei o trabalho do novo livro. Meta modesta, porém constante: uma página por dia. Cenas novas. Capítulos reescritos. Cortes em passagens que pareciam ótimas dois anos atrás, mas agora soam sem vida. E uma versão final vai tomando forma. É um trabalho mais intimista que Pesadelo tropical, embora algumas pistas já estivessem ali. Mais difícil de escavar. Envolve menos revirar arquivos de jornais do século XVIII e mais questões traumáticas. Violências de outra natureza. Quase nunca escrevi em situações de pleno conforto. Talvez aos 17 anos, aficionado por histórias policiais, sentado datilografando uma máquina de escrever elétrica, emprestada, cinza metálico com pequenas marcas de ferrugem na parte inferior. Ronronava como um pequeno compressor. Daquelas teclas barulhentas não poderia sair outra coisa: enredos detetivescos com zumbis, conspirações alienígenas, tudo envolvendo fazendas assombradas no Sul de Minas. Culpa da série Arquivo X, exibida na Record aos domingos, livros da Agatha Christie, Conan Doyle, Thomas Harris e dos romances espíritas, poucos livros que existiam lá em casa, que lia como se fosse ficção científica. Coisas que chegavam numa cidade de cinco mil habitantes, acessada apenas por estrada de terra, até o final dos anos 90 e início dos anos 2000. Claro que não havia livraria na cidade. E tenho uma história ótima dessa época, que talvez apareça no livro (escrevo essa edição ouvindo a playlist para estudar como um filósofo medieval tendo revelação da verdade pela graça divina):
Uma vez mandaram uma biblioteca itinerante para Luminárias. Era uma espécie de micro caminhão preto com a bandeira de Minas Gerais e meia dúzia de logos de entidades estatais. É provável que a minha memória esteja me traindo nos detalhes, mas os detalhes falsos também são importantes. Estacionado do lado de cima da praça da igreja, em frente à escola municipal, com uma fila de crianças na frente e aposentados jogadores de baralho e camisa social desabotoada e chapéu de palha na cabeça espiando de longe. Vocês não têm ideia do impacto que aquela biblioteca causou à minha cabeça. Tinha uma pequena escada de compensado de madeira pra entrar lá dentro. Lembro até de ficar meio zonzo com a quantidade de livros enfileirados nas estantes. Era uma espécie de motorhome de livros. Peguei cinco livros policiais. Coletâneas de Sherlock Holmes que nunca tinha visto, Georges Simenon e depois pedi para meu irmão pegar mais cinco no nome dele. Um punhado de Arquivo X, uns livros de espionagem obscuros. Não tenho certeza do tempo que podíamos ficar com o livro, uma semana, ou três dias. Não havia tempo a perder. Passei aqueles dias e noites lendo sem parar. Só parava para comer e para ir ao banheiro. O galo cantou de madrugada enquanto eu atravessava as últimas páginas do conto O problema final, uma história que eu era louco pra ler, mas nunca tinha conseguido encontrar na pequena biblioteca da escola estadual Prof. Fábregas. É neste conto que o professor Moriarty e Sherlock Holmes caíam juntos num despenhadeiro. Poucas vezes fui tão feliz na minha vida como naqueles dias que li quase um livro por dia. Deixei os livros na mão do funcionário e perguntei se eles voltariam um dia. Ele sorriu. E disse que talvez um dia voltassem.
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Inesperadamente, uma nota que publiquei aqui sobre as divertidíssimas playlists para escrever do youtube e com seus títulos de forte impacto inspiracional meio que viralizou no subtstack. Estou há um mês recebendo notificações deste post. Essas playlists são uma espécie de mandinga. A gente duvida acreditando, acredita duvidando, finge que não duvida, e brinca de levar a sério, como numa boa ficção. Os detalhes falsos também são importantes.
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Estamos todos meio chocados com a escolha deliberada da produção da série The Last of Us de ser fiel a história original e matar Joel, o personagem de Pedro Pascal, nessa temporada. Como uma série é um objeto narrativo diferente de um jogo, duvido muito que sustente o nível de interesse sem o carisma do ator. Devo voltar a série em um texto mais longo, mas minha hipótese é que The Last of Us revitaliza o desgastado universo dos zumbis com dilemas morais que lembram fábulas e parábolas. Não dá para falar de liberdade sem causas e consequências graves. Essa austeridade moral é o esqueleto que sustenta a narrativa. Um esqueleto arrancado das ruínas das antigas formas arcaicas para reorganizar agora o neoprimitivismo do novo mundo. O contrário disso é a liberdade cínica no qual o jogo das causas e consequências tem a gravidade dos atos de uma festa infantil. Olhando de fora, parece engenhoso, triunfalista, barulhento e caótico, mas tudo não passa de joelhos esfolados, mordidas no parquinho, o tédio e o riso falso nos olhos tristes de um monitor de crianças que ganha cem reais por dia, pratos de papel vermelho com manchas de brigadeiro e um pai que esqueceu onde estacionou o carro.
Dificilmente uma história bem intencionada e edificante vai ressoar um bom objeto estético, mas quando, por exemplo, colocamos em contraste uma bondade que beira a pureza, como em Dersu Uzala de Akira Kurosawa, contra um mundo hostil e cego, de fome e frio, temos uma tensão estética interessantíssima.
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Escrevi sobre a nova temporada de Black Mirror para o Brasil de Fato. Numa temporada irregular, o primeiro episódio se destaca e lembra os grandes momentos da série.
Já The White Lotus parece realmente ter esgotado a fórmula de colocar nossas pulsões no palco. Essa temporada, com poucos personagens realmente carismáticos, a grande exceção talvez seja Aimee Lou Wood, ficou parecendo um Powerpoint de conceitos fundamentais de psicanálise.
Por falar em medo e desejo, revi neste feriado A esfera, com o Joaquim. Adaptação do livro de Michael Crichton para o cinema, com Sharon Stone, Dustin Hoffman e Samuel L. Jackson. É um dos melhores filmes de ficção científica dos anos 90 e antecessor espiritual de A chegada, de Denis Villeneuve.
Diz a lenda que Michael Crichton assinou um contrato milionário com Steven Spielberg antes mesmo de terminar de escrever Jurassic Park. Mas o roteiro que chegou ao cinema sofreu muitas transformações. O livro de Michael Crichton é muito mais sombrio.
A esfera também trabalha com nossas pulsões. E joga de maneira brilhante com a relação umbilical entre medo e desejo. Medo e desejo são duas faces da mesma moeda.
Michael Crichton em 1983
Ao lado de Spielberg, o pequeno hobbit.
Aliás, Os Fabelmans não é sobre cinema. É uma propaganda da eclosão da não-monogamia nos anos 50.
5#
Recomendo muito essa reportagem do Andrey Raychtock, sobre uma história que o Ronaldo Fenômeno contou num podcast. É também uma reportagem sobre como pesquisar uma história, investigar uma história. Toda boa narrativa é pedagógica no sentido que amplia nossa capacidade de escrever narrativas, ampliando suas formas.
Por falar em Sul de Minas, diz a lenda que Pelé na verdade não nasceu em Três Corações, mas no município vizinho, ou seja, Luminárias, nas redondezas da Fazenda da Laje. Ouvi muitas vezes essas história.
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